No princípio foi A Língua: a perfeita, simétrica e sólida voz do primeiro homem. Depois veio a arrogância humana, a confusão, a queda, a derrocada, as línguas. Na faustosa Torre de Babel do velho Brueghel, vê-se bem: o edifício ia ser perfeito, simétrico, sólido e ordenado – o que só podemos intuir, porque esse lado fica na face oculta da torre. A que está virada para o nosso olhar é a parte derrubada, a parte ondulante e lassa de um work in progress ou de um desastre. A parte sã da torre está virada para terra firme. A parte que ruiu fita o mar, como à espera do tsunami que lhe dê o tiro de misericórdia.
Outrora foi a língua perfeita, a ordem com bases firmes. Depois, veio a tradução: o caos prestes a naufragar. É o que nos conta a tradição religiosa, essa grande censuradora das diferenças. Mas eu não considero que Babel tenha sido um castigo. Reputo-a tão sagrada como a música e o riso. Que provincianos seríamos todos sem a tradução (...). Em que mundo tão acanhado habitaríamos sem a estranheza das paisagens distantes, das palavras impronunciáveis, das ideias alheias.
A tradução é essa torre de Brueghel: esse fantástico esforço que nos ergue acima de nós mesmos, das nossas casas aborrecidas e banais. Não é a sombra de uma perfeição, mas uma tentativa de completar o sempre assintótico gesto de dizer. Os que clamam que a tradução é um fracasso frente ao original esquecem que os próprios poetas, nas suas línguas maternas, expressaram frequentemente a incapacidade de dizer inequivocamente. Bem cantava Prufrock: “That is not what I meant at all. That is not it, at all.” E, nos Quatro Quartetos, Eliot declarou sem rebuços que “cada intenção / É um novo começo, e um outro tipo de fracasso / …” (…)
G.A. Chaves, Todas as palavras levam a Babel (tradução da luanumbalde)