No princípio foi A Língua: a perfeita, simétrica e sólida voz do primeiro homem. Depois veio a arrogância humana, a confusão, a queda, a derrocada, as línguas. Na faustosa Torre de Babel do velho Brueghel, vê-se bem: o edifício ia ser perfeito, simétrico, sólido e ordenado – o que só podemos intuir, porque esse lado fica na face oculta da torre. A que está virada para o nosso olhar é a parte derrubada, a parte ondulante e lassa de um work in progress ou de um desastre. A parte sã da torre está virada para terra firme. A parte que ruiu fita o mar, como à espera do tsunami que lhe dê o tiro de misericórdia.
Outrora foi a língua perfeita, a ordem com bases firmes. Depois, veio a tradução: o caos prestes a naufragar. É o que nos conta a tradição religiosa, essa grande censuradora das diferenças. Mas eu não considero que Babel tenha sido um castigo. Reputo-a tão sagrada como a música e o riso. Que provincianos seríamos todos sem a tradução (...). Em que mundo tão acanhado habitaríamos sem a estranheza das paisagens distantes, das palavras impronunciáveis, das ideias alheias.
A tradução é essa torre de Brueghel: esse fantástico esforço que nos ergue acima de nós mesmos, das nossas casas aborrecidas e banais. Não é a sombra de uma perfeição, mas uma tentativa de completar o sempre assintótico gesto de dizer. Os que clamam que a tradução é um fracasso frente ao original esquecem que os próprios poetas, nas suas línguas maternas, expressaram frequentemente a incapacidade de dizer inequivocamente. Bem cantava Prufrock: “That is not what I meant at all. That is not it, at all.” E, nos Quatro Quartetos, Eliot declarou sem rebuços que “cada intenção / É um novo começo, e um outro tipo de fracasso / …” (…)
G.A. Chaves, Todas as palavras levam a Babel (tradução da luanumbalde)
«To make a prairie it takes a clover and one bee»
Emily Dickinson
Admirar uma papoila,
por ser só e ser vermelha
no verde tenro de maio;
ler três ou quatro versos
de um poeta morto
e numa folha de trevo
encontrar o meu rosto;
olhar a lua subindo a serra,
nem tanto pela velha lua,
mas por eu desejar vê-la.
Pouco? Talvez nada me contente,
nunca nada me complete.
Ah bolhinhas de ar, plops de nada —
espuma de ondas em redor dos pés.
© soledadesantos
Sob o caramanchão de glicínia lilaz
As abelhas e eu
Tontas de perfume
Lá no alto as abelhas
Doiradas e pequenas
Não se ocupavam de mim
Iam de flor em flor
E cá em baixo eu
Sentada no banco de azulejos
Entre penumbra e luz
Flor e perfume
Tão ávida como as abelhas
Sophia de Mello Breyner Andresen, Abril de 1998
Toquei incertamente a brandura
e o que ardia na placidez da tarde – o olhar.
Ah, como Bandeira, minha grande ternura,
ainda que ninguém precise dela.
© soledadesantos
Foste a chuva iluminada foste o frio
que se acendeu
nos lábios deste inverno. Agora
o calor voltou,
hei-de saudar na varanda
a primeira lua da primavera
e não haverá fagulhas verdes
nos olhos de ninguém, verás.
© soledadesantos
Mas de nada vale afastar as causas da tristeza pessoal, quando tantas vezes nos assalta a repulsa pelo género humano e vemos tantos crimes bem sucedidos. Quando pensas quão rara é a humildade e quão invulgar é a inocência; como é curta a lealdade, excepto quando é diligente; que a licenciosidade tem tantas vantagens como prejuízos; e que a ambição, indo para além dos seus próprios limites, acaba por brilhar através da sua ignomínia; a alma entra na noite e, subvertidas as virtudes, parece que nada se deve esperar delas e que nada se aproveita em cultivá-las; e as trevas levantam-se. Por isso, devemos esforçar-nos por encarar todos os vícios vulgarmente praticados não como detestáveis, mas sim como ridículos, e devemos imitar Demócrito mais do que Heraclito: de facto, sempre que apareciam em público, este último chorava, e o outro ria; um via mágoa em tudo o que se fazia; o outro via disparate. Peguemos, pois, nos fardos e carreguemo-los de ânimo leve: é mais humano troçar da vida do que lamentar-se dela.
Séneca, A felicidade e a tranquilidade da alma, Ésquilo edições, Lisboa, 2006
De uns, prosseguir é destino,
de outros, aportar.
Nunca soube qual era o seu.
Qualquer terra extrema
acolhe o corpo forasteiro.
© soledadesantos
Nunca meus olhos viram
criatura tão bela como tu,
nem homem nem mulher cuja beleza
me confundisse e comovesse tanto!
Só uma vez, em Delos, junto do altar de Apolo,
vi qualquer coisa de parecido:
um ramo de palmeira... a subir para o céu!
Odisseia, em Imagens da Poesia Europeia I, David Mourão-Ferreira
Investia duramente
mãos arranhadas
das silvas e da ternura dilapidada.
Investia sobre as palavras,
era a intempérie/a míngua
a mais antiga das tempestades
que regressava.
© soledadesantos
A tua música era outra
escura
funda
nos mercados - dizem
cantam-se agora novas canções.
© soledadesantos
Deita a cabeça no meu ombro,
dá-me
as tuas mãos, fecha
os olhos.
Depois
canta baixinho
as canções que ambos sabemos.
And be still, my love
que não te faço mal,
que não te peço muito
nem te direi as palavras tristes.
© soledadesantos
Absoluta lua hasteada
em madrugadas que raiam
novas para alguém.
Abre-se a janela –
mundo adiado no silêncio breve
antes que o sumidouro nos leve em outro dia.
© soledadesantos